domingo, 10 de maio de 2009

Cores que berram

- Bom, temos esse aqui. Veja só que graça, é o mais vendido entre os surfistas.

Ia aproximando o par de tênis mais e mais da cara do bigodudo.

- Não, não. Acho que ele não vai gostar.

- E esse aqui? -Disse o vendedor pegando outra caixa. - Esse é marrom com cinza, combina com as montanhas, é bom pra escalar, tem um ótimo sistema de amortecimento...

- Creio que o senhor não entendeu. O moleque é vidrado em futebol. Não tem chuteira de campo?

- Ah, sim. Claro, um momento que vou buscar no estoque.

O vendedor saiu e deixou o cliente sentado. Este tinha olhos pequeninos e bem pretos, que combinavam com seus bigodes pretos. Era dotado de uma barriga avantajada, fruto de várias tardes de domingo de futebol e choppinho. A calvície chegava pelas laterais de sua cabeça. Viera comprar um presente para o sobrinho Juca, seu preferido. Esperava sentado.

O rapaz que desde o início tentava empurrar o que havia de mais caro para o bigodudo, procurava agora sua melhor chuteira, a qual conseqüentemente esvaziaria mais o bolso da calça jeans apertada na cintura que estufava ainda mais a barriga do cliente bigodudo. Quando já pensava ter se esgotado aquele modelo, encontrou, debaixo de uma coluna de tênis femininos, a caixa. A última caixa, aliás. Abriu-a para ver se estava tudo certo, e espantou-se ao deparar-se com uma chuteira laranja e verde. Laranja e verde! Quem diabos iria comprá-la? De que servia uma chuteira que não fosse preta, ou prateada, como estava agora na última moda entre os jogadores considerados "medalhões"? Ninguém compraria aquela chuteira. Não era à toa que estava ali, escondida, esquecida. Laranja e verde! Contudo, pensando nos lucros e em formas de ludibriar o carrancudo bigodudo, decidiu levá-la e mostrá-la ao cliente.

- O senhor deu sorte! Este aqui é o último par. A melhor chuteira, da melhor marca.

O homem pegou a caixa e abriu-a.

- Laranja e verde? Parece mais com um uniforme de escola de samba!

- Ora! Mas o seu filho é vidrado em futebol, ou em moda? Com essa aqui ele vai bater faltas espetaculares, correr sem derrapar e aumentar o domínio de bola!

O vendedor falava como se estivesse num comercial pra tevê e já tivesse treinado essa mesma fala mais de tantas vezes.

- Não é meu filho...É meu sobrinho. Não tive filhos....Bom, vou ficar com ela.

Pagou caro pelo presente colorido e saiu da loja cantarolando.

- Sistema de amortecimento....pff...!

E riu.

No dia do aniversário de Juca, o tio Roberto fora o primeiro a chegar. Sorridente, abraçou o menino (não tão entusiasmado quanto o tio) e lhe entregou o presente. Juca abriu o pacote e lá estavam as chuteiras: laranja e verde. Forçou um sorriso e deixou a caixa na mesa. Agradeceu ao tio e foi para a cozinha. Era um garoto bem educado.

A mãe, que enrolava brigadeiros, olhou-o de cara feia, e disse carrancuda :

- Juca! Tente ser mais entusiasmado! Seu tio Roberto pagou caro pelos sapatos!

- Não são sapatos, mãe. São chuteiras. Você sabe que detesto futebol. E ainda por cima laranja e verde.

- Ora, não importa! Vista já esses tênis e vá mostrar pro seu tio!

Juca, na verdade, era um garoto que preferia ficar em casa a sair de noite; de ler um bom livro, a praticar esportes. Por conseqüência de tais hábitos, escrevia sempre poemas muito bons, reconhecidos pela sua professora como um jovem talento. Tinha compaixão pelo tio, conhecendo sua história. Roberto, palmeirense fanático, casara-se cedo e era completamente apaixonado por sua esposa. Ela estava grávida. Na hora do parto, Deus quis levar sua alma e a da criança que trazia no ventre. Nunca mais Roberto olhou para outra mulher. Via em Juca o filho que não teve, e, por amar o futebol, preferia acreditar que Juca também o amava. E essa compaixão que o menino tinha pelo tio foi que o fez subir ao seu quarto e vestir as chuteiras. Laranja e verde. Antes de descer, olhou para a prateleira e viu o presente que ganhara de manhã de seus pais. Um livro de poemas, comprado no sebo da esquina, por cinco reais. E desceu, com a cara mais contente do mundo, parte pelo livro, parte para contentar o tio.

- Isso! Olha só que campeão! Uma beleza! O futuro Edmundo! As cores são berrantes, mas dá pra jogar uma bola..!

Juca sorriu sem dizer nada. Só pensava no que iria fazer quando todos os convidados já tivessem ido embora. Iria à casa da namorada, que também amava a leitura, para ler e escrever com ela.

À noite, quando só sobraram na casa Juca e sua mãe, esta foi ter com aquele.

- Eu sei que você não gosta muito de bola, mas precisa entender seu tio. Não pôde ter filhos, e têm você como sendo dele. E adora futebol, e gostaria que você gostasse também. Diz pra todos os amigos que você é palmeirense roxo! Vive te levando nos estádios...

Sorrindo, e com um fantástico brilho de compreensão nos olhos, que só as crianças quando têm compaixão podem ter, ele responde um simples "É mãe, eu sei.", e saiu pela porta, em direção à casa da namorada, Marina.

Saiu com o livro embaixo do braço, e os tênis laranja e verde nos pés. Marina morava longe, uma meia hora de caminhada. Quando chegou lá, cansado, mas feliz, teve de explicar à mocinha que ria dele o porquê de usar aquela chuteira. "Laranja e verde!" dizia a menina.

Leram, namoraram, escreveram, trocaram juras de amor, e , antes de Juca sair, Marina escreveu uma dedicatória e um poema feito por ela na capa do livro ganho de aniversário e se despediu dele com um beijo demorado. No meio do caminho de volta, lá pelas onze, saltou da penumbra da noite um homem envolto de sombra. Mal encarado, se tornava ainda mais assustador àquela hora. Juca andou depressa. O homem andou mais :

- Passa a grana moleque! -Disse, encostando algo pontiagudo nas costas do menino.

- Mas eu não tenho nada...-Calmamente, escondendo o medo, Juca respondeu ao marginal.

- Então passa esse livro aê! -Forçou o canivete contra o ombro do garoto, que encolheu-se mais ainda.

- Não! O livro não, por favor! -Agarrou-se a ele como um bebê agarra-se à mãe numa situação de perigo.

- Ah, moleque. Entenda minha situação...preciso levar alguma coisa.

O menino, suando, não pestanejou. Tirou o par de chuteiras dos pés, e antes de entregá-las nas mãos do bandido, falou:

- Toma. As cores são berrantes, mas dá pra jogar uma bola.

2 comentários:

  1. chu, vc não tem as datas dos textos que você fez??


    ps: horrivel postar comentário assim na mesma página :/ ... coloca pra abrir em outra janela (tipo pop up)!

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  2. Uma homenagem mais que justa :)
    hahaha

    Beijos
    Marina Marins :*

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